sexta-feira, 8 de julho de 2011

“HELL MONEY - DINHEIRO DO INFERNO”

                                                                                       © 2010 Marcio Rovere Sandoval


Figura 1 - Papel de oferenda ou bilhete funerário chinês
contemporâneo, em estilo “tradicional” - 132 x 115 mm.
(clique para ampliar)

“A origem de todas as coisas reveste-se de lendária suavidade. Mesmo depois de estudarem-se os comprovantes de um fato histórico, a imaginação procura dar lhe roupagens poéticas, de modo que a ocorrência possa ter um conteúdo humano, nem sempre transmitido pela frieza dos documentos” (in, Dinheiro no Brasil. F.dos Santos Trigueiros. Rio de Janeiro: Leo Christiano Editorial. 1987, p. 34).

Quando Marco Pólo (1254 – 1324) em 1295 retornou da China e revelou que o imperador Kublai Khan (1215 – 1294) imprimia folhas de papel valendo tanto quanto ouro ou prata e ainda a existência do costume de queimar falsos bilhetes em homenagem aos mortos, seus contemporâneos restaram incrédulos.
Não era por menos, na Europa a moeda era exclusivamente metálica e uma forma aproximada do papel-moeda, a letra de câmbio, somente apareceria cem anos mais tarde, já no século XIV.
Naquela época os chineses já tinham criado um sistema bancário complexo e utilizavam bilhetes de papel impressos pelo método xilográfico (placas de madeira gravadas) e calcográfico (placas de bronze) que continham o selo imperial, a assinatura do Tesoureiro e a sanção pela eventual falsificação, a pena capital. Essa mesma pena seria também aplicada a todos aqueles que recusassem o recebimento dos bilhetes. Tinham curso forçado semelhante aos atuais, isto quer dizer, não tinham lastro em ouro ou prata, situação semelhante só ocorreria no mundo ocidental depois da 1ª Guerra Mundial.[1]
O papel-moeda apareceu na China por volta do século VIII de nossa era por razõesde ordem prática e cultural.
Mas como se deu essa descoberta? Vamos remontar ao passado.
Pesquisas arqueológicas comprovadas situam o aparecimento da escrita entre os chineses por volta de 1400 a.C.[2]. Para efeito comparativo temos que as primeiras inscrições suméricas são de cerca de 3300 a.C. e os hieróglifos egípcios de 3100 a.C.
Os chineses usaram diversos suportes para a escrita, como ossos de animais (entre 1400 e 1100 a.C.), utensílios de bronze (a partir de 1100 a.C.), pedras (a partir de 750 a.C.), matérias vegetais como cascas de árvore, ripas de madeira, lâminas de bambu (em torno de 1100 a.C.) e tecidos como a seda (a partir de 750 a.C)[3].
Nos anais da história chinesa, a invenção do papel é precisamente datada, ano 105 de nossa era, e o inventor seria Cai Lun, alto funcionário da corte de Han. Descobertas arqueológicas, no entanto, sugerem que o papel já era utilizado desde a metade do II milênio a.C. Cai Lun, mesmo não sendo o inventor do papel como suporte da escrita, teria introduzido melhorias técnicas (introdução de fibras de tecido), dotando o papel de características que permitiram sua melhor utilização.
Como surgiu o papel-moeda entre os chineses? Para descortinar essa questão vamos primeiro conceituar o objeto.

“O bilhete de banco[4] se apresenta como um retângulo de papel, na maioria das vezes ilustrado, que traz a indicação de um valor monetário e que se destina a servir de instrumento de pagamento. Totalmente desmunido de valor intrínseco, permanece ligado às relações fundamentais entre a inscrição e o valor financeiro e pode ser interpretado como a consequência longínqua do processo que fez nascer simultaneamente a escrita e o traço contável a mais de 5000 anos na Suméria. O papel-moeda também atesta o irreversível movimento de desmaterialização da moeda. Moeda esta que foi conduzida do mundo das coisas ao mundo dos signos. A moeda confirmava pela sua presença tangível o valor real da troca e foi sendo substituída progressivamente por um “papel confiança” de natureza simbólica.” (in: La saga du Papier. Pierre-Mark Biassi e Karine Douplitzky. Paris: Sociéte nouvelle Adam Biro e Arte Éditions, 2002, p. 234).

No mundo ocidental, os bilhetes de banco estiveram no início de sua existência amparados por uma garantia palpável, representada por um peso definido em metal precioso conversível sobre simples demanda[5].
Inventado pelos chineses no séc. VIII, após uma penúria de espécies metálicas (moedas de cobre), o papel-moeda só seria efetivamente implantado na Europa com a criação do Banco da Inglaterra, em 1694.
Inicialmente os bilhetes de banco eram lastreados, podendo ser denominados mais apropriadamente como moeda-papel. Essa garantia foi desaparecendo pouco a pouco e os bancos passaram a emitir além do que poderiam resgatar, gerando crises e desconfiança em relação a estas emissões.
O papel-moeda acabaria por se impor após a 1ª Guerra Mundial, quando em geral foi suprimida a conversibilidade da qual o público raramente fazia uso.
A garantia do ouro foi substituída pelo sistema internacional de equilíbrio recíproco das moedas com lastro sobre as divisas dominantes, com utilização da libra esterlina e do dólar, depois apenas do dólar. (op. cit. p.234). Hoje é justamente a China que vem contestando este sistema.
Voltando ao Oriente.
Como vimos, o papel-moeda teria aparecido na China no séc. VIII de nossa era por causa de uma penúria de espécies metálicas.
Vamos insistir na denominação papel-moeda e não moeda-papel. Desta forma surgirá a questão: como poderia ter surgido o papel-moeda na China já com esse conceito abstrato (desmunido de valor intrínseco) que só veio a se concretizar no mundo ocidental séculos mais tarde, mais precisamente no início do séc.XX, após a 1ª Guerra Mundial?
A explicação está no próprio conceito abstrato da moeda na sociedade chinesa daquela época. Os chineses utilizavam no dia-a-dia moedas de cobre, segundo se acreditava mais apropriadas para a utilização diária do que o ouro e a prata. Assim, a moeda na sociedade chinesa era um sistema local de relações fiduciárias sem valor intrínseco. No início, os comerciantes emitiam as moedas ou mesmo os bilhetes, sendo a garantia de “pagamento” a notoriedade e riqueza do empreendedor.
As primeiras experiências do papel-moeda, no entanto, estão ligadas ao crescimento do comércio, que gerou falta de numerário, que por sua vez não podia ser implementado por causa da escassez das reservas de cobre. Havia ainda o problema da abundância de moedas falsas.
Desde a metade do séc. III a.C., a unidade monetária chinesa é o sapeca (sapequeou cash), uma moeda de cobre com um buraco no meio. A unidade superior, o min ou o guan equivalia a mil sapecas amarrados entre si através de um fio.
Essas moedas juntas pesavam mais de três quilos, dificultando enormemente o seu transporte.
No final do séc. VIII d.C., os grandes comerciantes tinham o hábito de confiar as moedas contra um bônus emitido pelo poder imperial, conhecido como “moeda volante” (Feiqian). Eram verdadeiras letras de câmbio.
Na dinastia Song (960 – 1279), a persistência da penúria de cobre deu origem a uma moeda de ferro, intransportável, que acabou precipitando o surgimento do papel-moeda.
No inicio, os próprios comerciantes o emitiam e, em torno de 1070, o Estado o instituiu na forma de assinados.
No séc. XII, com a expansão sobre o Ocidente, é emitida grande quantidade de papel-moeda, causando inflação que se estende até a dinastia Mongol (séc. XII a XIV). Na dinastia Ming (1368 – 1644), a China entra em contato com as correntes monetárias ocidentais e adquire a prata das colônias espanholas (e até portuguesa) da América, difundidas a partir das Filipinas no final do séc. XVI. O Imperador Yung Lo (1403 – 1425) aboliu a utilização do papel moeda na China, voltando o mesmo a circular depois de 1851[6].
Assim, as primeiras manifestações do papel-moeda tiveram curso na China do séc. VIII. Mas qual seria a inspiração para a sua criação?

[1] Alguns autores afirmam que inicialmente os bilhetes eram “lastreados” nas moedas de cobre e depois, sobrevindo a inflação, teria sido utilizado o ouro e prata em alguns períodos.
[2] Certas inscrições evocam períodos anteriores em torno de 2500 a.C, mas ainda não comprovados.
[3] As datas são todas aproximadas.
[4] Cédula bancária na denominação técnica.
[5] Pelo menos em tese.
[6] Ainda estamos à procura de maiores evidências sobre esse acontecimento.

Figura 2 - Papel de oferenda ou bilhete funerário,
imitando uma barra de ouro - 86 x 35 mm. (clique para ampliar)

O papel-moeda utilizado nas trocas comerciais reais teria sido criado senão a imitação de uma moeda fictícia bem mais antiga utilizada no culto dos mortos pelos budistas e taoístas.[1] Essa moeda fictícia é denominada “paper offering” ou “joss paper” em inglês e “papierd’offrande” ou “billets funéraires”, em francês.
A moeda de oferenda passou a ser feita de papel desde o séc. III ou IV d.C para o culto dos mortos. Como vimos, Marco Pólo observou essa prática.
Os bilhetes fictícios, imitando placas de ouro, são transformados em fumaça e montam em direção aos céus e hão de se reconstituir no outro mundo (no Além) para pagar a dívida que o defunto havia contraído na sua nascença com a tesouraria “do Além”. Da mesma forma se queimam papéis de ouro fictício diante das casas e aos pés das divindades, para lhes implorar favores; no interior das casas para proteção do lar; queimados no exterior previnem os efeitos maléficos.
A expressão “do Além” significa inferno, mas difere do conceito ocidental de inferno. Para os orientais, o inferno é um local de passagem e não de castigo. Quando os missionários ocidentais ameaçavam os chineses com o sofrimento eterno no inferno, eles não compreendiam e a ameaça não fazia efeito.
A utilização da moeda de oferenda é uma tradição milenar na China, sendo que até mesmo os cauris[2] foram imitados, ainda no período neolítico.
Com a imigração chinesa no mundo e a partir do final da década de 60 (a que tudo indica) passaram a ser impressos bilhetes funerários ou papel de oferenda em estilo ocidental, imitando bilhetes de bancos americanos e mesmo de outros paises asiáticos, bem como chineses.
As formas tradicionais ainda continuam sendo fabricadas, veja figura 1. Esses bilhetes funerários modernos são denominados “Hell Bank Note”, ou seja, “papel moeda do inferno”. Essa denominação foi dada durante o séc. XIX pelos colonizadores ingleses, que os denominavam “Hell Money”. Não se trata de uma brincadeira e nem de algo ofensivo, a resposta a sua existência está na tradição taoísta e budista[3] que prevê a queima do papel de oferenda como acima mencionado.
Existe uma variedade muito grande desses bilhetes. Um estudo na década de 70, em Taiwan, apontava mais de 800 tipos (dos tradicionais). Em muitos, aparece a imagem do Imperador Jade, que na mitologia taoísta é o senhor dos céus e de todos os domínios de existência abaixo, incluindo o homem e o inferno.
Na sequência, temos a reprodução de alguns dos bilhetes contemporâneos.

[1] São raros os autores que mencionam estes antecedentes mas encontramos menção até mesmo no site oficial da Banco da Bélgica, país com grande tradição em numismática.
[2] Cauri é um molusco marinho cuja concha foi utilizada no passado, na Ásia e na África, como moeda.
[3] Essa tradição pode ter origem até mesmo em cultos ancestrais.

Figura 3 - Papel de oferenda ou bilhete funerário chinês contemporâneo em estilo moderno (Hell Bank note), imitando as cédulas de banco. No anverso, à direita, temos o Imperador Jade. Observe o alto “valor nominal” deste bilhete – dois bilhões. (clique para ampliar)

Figura 4 - Papel de oferenda ou bilhete funerário chinês contemporâneo em estilo moderno (Hell Bank note), imitando as cédulas de 100 yuan da China. No anverso, temos a mesma imagem do bilhete antecedente, o Imperador Jade. Este bilhete é muito semelhante ao original de 100 yuan, podendo inclusive passar pelo verdadeiro aos desavisados -150 x 72 mm. (clique para ampliar)

Observação: Este é um estudo preliminar, baseado na pouca literatura disponível sobre o assunto. A maioria dos textos sobre a historia do papel-moeda não menciona suas origens como sendo uma variação dos papéis utilizados na tradição religiosa chinesa. Por este motivo tratamos a questão como hipótese provável.

Bibliografia:
BIASI, Pierre-Mark de e DOUPLITZKY, Karine. La saga du Papier. Paris: Société nouvelle Adam Biro e Arte Éditions, 2002.
BOEYKENS, Coralie. Le billet, une invention chinoise? Musée de la Banque nationale de Belgique – http://www.nbbmuseum.be/fr/2007/09/chinese-invention.htm
HOU, Ching-Lang. Monnaies d’offrande et la notion de thésorerie dans la religion chinoise. Paris: Institut de hautes études chinoises. 1975.
Obs.: Este livro traz informações sobre a moeda de oferenda em Taiwan, onde, segundo o autor, esta prática conservou-se mais do que no continente (em virtude da Revolução Cultural neste último). O autor, um colecionador, adotou a classificação corrente em Taiwan e estabeleceu um catálogo.
PICK. Albert. Standard Catalog of World Paper Money. USA: Krause Publications, 12ª Edition, General Issues (1368 – 1960), 2008.
Obs.: Este catálogo apresenta na parte concernente à China, a catalogação dos bilhetes mais antigos existentes, quais sejam: Dinastia Ming (1368-1644) AA2 – 20 cash (1375), AA3 – 300 cash (1368-99) e AA10 – 1 kuan (1368-99).
SANDROCK, John E. Ancient Chinese Cash Notes – The world’s first paper money.
Part I e Parte II. (Clique para ter acessar)
Obs.: Estudo disponível on line, traz diversas imagens e fragmentos dos bilhetes antigos da China, inclusive da moeda volante.
TRIGUEIROS, F. dos Santos. Dinheiro no Brasil. Rio de Janeiro: Leo Christiano Editorial, 1987.

Autor: Marcio R. Sandoval (sterlingnumismatic@hotmail.com) - agosto 2010.